Viúvo Concorre com Descendentes – Artigos 1.829 e 1.832 do Código Civil

Na matrícula consta a adquirente Fulana, brasileira, solteira, maior, doméstica. Escritura de 12.10.1977. Não constou RG nem CPF;

Nos autos de inventário para cá enviado pelo Juízo a quo  para nossa manifestação, consta que a mesma se casou aos 23.10.1982 sob o regime da comunhão parcial de bens com Beltrano. Não houve a comunicação do patrimônio.

Na documentação dos autos vejo que ela deixou quatro filhos, dois deles com terceira pessoa, nascidos antes de seu casamento acima referido, e outros dois filhos tidos com o marido.

A partilha apresentada vem atribuindo 20% ao viúvo Beltrano e 20% a cada um dos quatro filhos. [ 20 + (4×20) = 100 ]

Diz o artigo 1832 que “caberá ao cônjuge quinhão igual aos dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer“.  A questão é que ele é pai de apenas dois dos filhos da finada, pois os outros dois herdeiros filhos dela foram tidos antes do casamento deles. Como interpretar essa disposição, dada essa circunstância sui generis? Está  correta a atribuição de 20% colocada na partilha apresentada ou o viúvo deve receber 25%?

Quanto à falta de documentos pessoais da falecida, entendo que devo pedir que providenciem ao menos a inscrição no CPF, haja vista a exigência da Receita Federal para a DOI. Correto?

Resposta:

  1. O artigo 1.829 I do CC define a sucessão legítima aos descendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente, casado no regime da comunhão parcial de bens  quanto ao bens particulares.
  2. Já o artigo 1.832 do mesmo codex  menciona   que em concorrência com os descendentes (art. 1.829, inciso I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer.
  3. Essa é uma questão tormentosa que ainda não foi solucionada pelo legislador do Novo CC e que infelizmente não fez previsão de hipótese de dois grupos de descentes comuns e exclusivos em concorrência com o cônjuge sobrevivente;
  4. No livro: “ Comentários ao Código Civil” Editora Saraiva  – Volume 20 – 2.003, de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka páginas 224/229 a menção de três propostas para solucionar a questão sendo a 3ª proposta de composição hibrida, subdividindo-se proporcionalmente  herança, segundo a quantidade de descendentes de cada grupo (comuns e exclusivos) em concorrência com o cônjuge sobrevivo, mencionando que por raciocínio bem poderia ser interpretada pelo intérprete  em face a lacuna do legislador conforme segue:

A primeira classe a ser chamada à sucessão será a dos descendentes do de cujus, em concorrência com o cônjuge  supérstite  que satisfaça as exigências relativas ao regime matrimonial de bens.

A regra geral é, portanto de que o cônjuge supérstite e os descendentes recebam a mesma quota hereditária. Todavia, essa regra encontra exceção na parte final do artigo sempre que a concorrência se der entre o cônjuge supérstite e quatro ou mais dos descendentes que teve em comum com o de cujus.

A sucessão que se resolva na vocação da primeira classe, isto é, a dos descendentes, verá o acervo hereditário ser dividido em tantas partes quantos forem os suscetíveis desta classe, mais uma parte atribuível ao cônjuge supérstite . Essa regra aplica-se a todos os herdeiros de primeira classe que recebam por direito próprio (ou filhos ou netos, ou bisnetos) ou que recebam por força do direito de representação (por estirpe), concorrendo com os suscetíveis de grau imediatamente anterior.

Todavia, se a quota-parte cabível ao cônjuge sobrevivo for menor do que a quarta parte do monte-mor, e se todos os chamados a suceder forem também sues descendentes, a lei lhe reserva esse montante, que será descontado do acervo hereditário, repartindo-se os outros 75% entre os descendentes que com este concorrem a sucessão.

Mas, se à sucessão concorrerem descendentes apenas do de cujus, então a reserva da quarta parte ao sobrevivo não prevalecerá, e a herança dividir-se-á  em tantas partes quantos forem  os descendentes, mais uma entregue ao cônjuge.

Questão mais tormentosa de que se busca solucionar, relativamente a essa concorrência prevista pelo dispositivo em comento, é aquela que vai desenhar uma hipótese em que são chamados a herdar os descendentes comuns (ao cônjuge falecido e ao cônjuge sobrevivo) e os descendentes exclusivos do autor da herança , todos em concorrência com o cônjuge sobrevivo. O legislador do código civil de 2.002, embora inovador na construção legislativa de hipótese de concorrência do cônjuge com herdeiros de convocação anterior à sua própria, infelizmente não fez previsão de hipótese agora em apreço, de chamada de descendentes dos dois grupos, que dizer, os descendentes comuns e os descendentes exclusivos. E é bastante curioso, atém observar essa lacuna deixada pela nova Lei Civil, uma vez que em nosso país a situação descrita é comuníssima , envolvendo famílias constituídas por pessoas que já foram unidas  a outras, anteriormente, por casamento ou não, resultando, dessas uniões, filhos descendentes, enfim) de origens diversas.

A dúvida que remanesce, em face da ausência de previsão legislativa para a hipótese, diz respeito, afinal, ao fato desse buscar saber se prevalece, ou não, a reserva da quarta parte dos bens a inventariar, a favor do cônjuge, em concorrência com os descendentes herdeiros.

Ora, a maneira que escolheu o legislador par redigir o art. 1.832 não deixa qualquer dúvida acerca da intenção de se dar tratamento preferencial ao cônjuge sobrevivo, quando se trata de concorrência com os descendentes  do de cujus que sejam também  seus descendentes, exatamente reservando-lhe a quarta parte da herança, como quinhão mínimo a herdar, por concorrência com aqueles. Observe-se que não fez idêntica referência, o legislador, par hipótese distinta, vale dizer, de serem herdeiros, com quem concorre o cônjuge sobrevivo, descendentes exclusivos do falecido. Logo, essa foi a opção do legislador civil brasileiro – privilegiar o cônjuge concorrente com a reserva da quart parte da herança, apenas no caso de concorrência  com os herdeiros dos quais fosse ascendente – e, por essa razão, essa opção passa a valer como paradigma para a exegese do regramento, pelo futuro doutrinador, bem como pelo futuro aplicador do direito, tudo em prol de uma sadia consolidação jurisprudencial do porvir.

Se esse foi o espírito que norteou a concreção legislativa no novo código civil – e trata-se de um formulação bastante elogiável -, entendo que ela deva ser preservado, ainda quando se instale, na vida real, a hipótese hibrida antes considerada, de chamamento de descendentes a herdar de ambos grupos, isto é,  de descendentes que também o sejam do cônjuge concorrente, e de descendentes exclusivos do autor da herança. Qualquer solução que se pretenda deitar por terra essa postural diferencial consagrada pelo legislador deveria estar consignada em lei, ela também, exatamente para evitar a variada gama de soluções que terão de ser, obrigatoriamente, organizadas pelo aplicador e pelo hermeneuta, formulando paradigmas jurisprudenciais que não guardem qualquer correlação com aquele espírito do legislador, claramente registrado no artigo (1.832).

Mas porque não há, na nova Lei Civil, uma disposição específica para a hipótese híbrida (descendentes comuns e descendentes exclusivos), soluções alternativas poderão ser levantadas para os  caso que se apresentares nesse interregno do tempo que se  estenderá até a entrada em vigor do Código e a necessária alteração legislativa, no porvir.

Se assim for, então, parecem ser três alternativas mais prováveis propostas de solução para as ocorrências híbridas de sucessão de descendentes dos dois grupos (comuns e exclusivos) em concorrência com o cônjuge sobrevivente.

1ª proposta: identificação dos descendentes (comuns e exclusivos) como se todos fossem também descendentes do cônjuge sobrevivente.

Por essa via, que considera todos os descendentes do de cujus como sendo descendentes também do cônjuge sobrevivo, a solução possível seria apenas aquela a reservar a quarta parte da herança a ser amealhada pelo cônjuge que sobreviveu.

Solução essa jaez representaria, no entanto, certo prejuízo aos descentes exclusivos do falecido, os quais, por não serem  descendentes do cônjuge com quem concorrem, restariam afastados de parte mais ou mesmo substanciosa do patrimônio exclusivo de seu ascendente morto.

Não se satisfaz, portanto, o espírito do legislador no novo código civil, que pretendeu privilegiar o cônjuge supérstite – nessa condições de reserva de parte ideal – tão somente quando tal cônjuge fosse também ascendente dos herdeiros de primeira classe  com quem concorresse. Por esse motivo tal proposta não deve prevalecer, não obstante garantir quinhões iguais aos filhos  de ambos os grupos (comuns e exclusivos) e ao cônjuge sobrevivente.

2ª proposta: identificação dos descendentes (comuns e exclusivos) como se todos fossem descendentes exclusivos do cônjuge falecido.

De todo modo como se cuidou de refutar a proposta anterior , também aqui se pode chegar à mesma conclusão de inobservância do espírito do legislador do Código Civil. Mas, aqui, a inobservância se verifica na medida em que o tratamento de todos os descendentes do de cujus como seus descendentes exclusivos acabaria por afastar a reserva da quarta parte do monte partível garantida ao cônjuge sobrevivo, como forma de lhe garantir maior amparo em sua viuvez.

Tratá-los, aos descendentes todos, como se fossem descendentes exclusivos do falecido representa solução que fecha os olhos a uma verdade natural (descendentes por laços biológicos) ou civil (descendentes em razão de uma adoção verifficada0, que é a única verdade que o legislador tomou como autorizadora da maior proteção dispensada ao cônjuge que sobreviver.

3ª proposta: composição pela solução hibrida, subdividindo-se proporcionalmente a herança, segundo a quantidade de descendentes de cada grupo.

Por essa via de raciocínio (que bem poderia ser intentada pelo intérprete, em face da lacuna do legislador), a divisão patrimonial  do acervo hereditário obedeceria `as seguintes regras:  primeiro se dividiria a herança em duas sub heranças, proporcionalmente  ao número de descendentes de cada um dos grupos (comuns e exclusivos). A sub herança que fosse destinada a compor os quinhões hereditários dos descendentes exclusivos seria dividida  em tanta quotas quantos fossem os herdeiros desta classe, mais uma (correspondente a quota do cônjuge concorrente, conforme determinação do art. 1.832, 1ª parte, entregando-se a cada um dos herdeiros o seu correspondente quinhão hereditário. A seguir, dividir-se-ia, da mesma maneira, a sub herança destinada a compor  os quinhões hereditários dos descendentes comuns, pelo número deles, mais uma, destinada ao cônjuge que com quem eles concorre. Supondo que a somatória dessa quota deferida ao cônjuge sobrevivente  (em concorrência com os descendentes comuns) e da quota igualmente deferida a ele (em concorrência com os descendentes exclusivos) fosse menor que uma parte da herança, então se reorganizaria  a divisão, para que esse preceito do legislador ordinário pudesse ser observado. Para tanto, a sugestão seria a de se abater da sub herança atribuível aos descendentes comuns  o quanto fosse necessário para – somando-se ao quinhão do cônjuge obtido já na sub herança  deferida aos descendentes exclusivos -consolidar o equivalente a 25% do total da herança (atendendo, assim, ao que dispões a 2ª parte do mesmo dispositivo em comento, o art. 1.832.

Ora, é muito fácil observar que, senão em circunstância real , excepcionalíssima, essa composição matemática não conseguiria atender aos preceitos envolvidos (arts. 1.829, I e 1.832), e não garantiria  a igualdade de quinhões atribuíveis a cada um dos descendentes da mesma classe, conforme determina o artigo 1.834, de caráter constitucional. Que dizer, nem se conseguiria obter – por essa proposta imaginada conciliatória – iguais quinhões  para os herdeiros da mesma classe (comuns e exclusivos), nem seria razoável que a quarta parte garantida ao cônjuge fosse complementada por subtração levada a cabo tão somente sobre a  parte do acervo.

De qualquer das formas, ao que parece , na concorrência de uma hipótese real de sucessão de descendentes  que pertencesse aos dois distintos grupos (comuns e exclusivos) em concorrência com o cônjuge sobrevivo, não haveria solução matemática que pudesse atender a todos os dispositivos do Código Civil novo, o que parece reforçar a ideia de que, para evitar uma profusão de inadequadas soluções jurisprudenciais futura, o ideal mesmo seria que o legislador ordinário revisse a construção legal do novo diploma civil brasileiro, para estruturar um arcabouço de preceitos que cobrissem todas as hipóteses, inclusive hipóteses híbrida, evitando i dissabor de soluções e/ou interpretações que corressem exclusivamente ao alvedrio do julgador ou do hermeneuta, mas desconsiderando tudo aquilo que, a princípio, norteou o ideal do legislador, formatando  o espírito da norma.

Sub censura.

São Paulo, 26 de Setembro de 2.022.

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